Nos últimos quatro anos, por exemplo, mais de dois milhões de ocorrências relativas à violência se materializaram em ações judiciais. A avaliação de juízes que lidam com o tema é de que, por trás desses números, há o amadurecimento da sociedade em relação aos direitos femininos. De 2020 a 2023, houve aumento de pouco mais de 40% na quantidade de processos de violência doméstica que tramitam nos tribunais brasileiros.
Conscientização
Para a supervisora da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica, instituída pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conselheira Renata Gil, o grande número de processos em tramitação reflete uma mudança de conscientização sobre não aceitar os atos de violência. Muito mais que o crescimento dos casos contra mulheres, há a conscientização e a mudança cultural da não aceitação e de não silenciar diante das agressões.
“As portas das instituições públicas estão abertas, mais visíveis e acessíveis às mulheres. O aumento de canais de denúncia, as campanhas nas ruas e a maior confiança no Sistema de Justiça também está por trás desse crescimento de processos”, avalia a magistrada, que também é idealizadora da campanha Sinal Vermelho, uma parceria do CNJ e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), lançada em junho de 2020, durante a pandemia de covid-19, quando os casos de violência doméstica explodiram.
Para ela, essas ações contribuem para dar suporte às mulheres que queiram denunciar os crimes.
“Elas passaram a entender que há como buscar justiça ao levar os casos ao conhecimento das autoridades”, diz Renata Gil.
Ocorrências
O Judiciário vem procurando, cada vez mais, elaborar formas de prevenir, acolher e responsabilizar os agressores, como determina a legislação. Um dos projetos aplicados no país é a Patrulha Maria da Penha, que, em parceria com a Polícia Militar, acompanha de perto mulheres que possuem medidas protetivas de urgência concedidas pela Justiça.
Presente em diversos estados brasileiros, entre eles Rio de Janeiro (RJ), Piauí (PI), Rio Grande do Sul (RS), Mato Grosso (MT), na capital federal o projeto recebeu nome diferente: Programa de Policiamento Preventivo à Violência Doméstica (Provid), e vai além do acompanhamento das famílias com medidas protetivas de urgência.
As equipes de segurança pública entram em contato com as mulheres vítimas que não chegaram a fazer B.O. e, caso aceitem ser acompanhadas, as equipes iniciam as visitas periódicas, orientando-as em relação aos seus direitos, inclusive alertando-as, caso percebam que elas estão em risco de escalada de violência.
Violência não pode ser naturalizada
Segundo a subchefe do Centro de Políticas de Segurança Pública da Polícia Militar do DF, major Isabela Almeida, essa medida pode evitar novas agressões. “Como, em geral, são meninas e mulheres que naturalizaram a violência desde cedo, elas não se enxergam em relações violentas e perigosas. Acompanhá-las é muito importante, pois a maioria das mulheres assassinadas são as que não denunciam, não as que possuem medidas protetivas de urgência”, explica.
Desde 2019, o programa já atendeu quase 19 mil pessoas e vem sendo aperfeiçoado constantemente para promover capacitação dos próprios policiais. “O servidor, o policial, os magistrados vêm da mesma sociedade dos autores e das vítimas de violência. Eles também precisam de sensibilização e reeducação”, diz.
O juiz Jamilson Haddad Campos, da 1.ª Vara de Violência Doméstica de Cuiabá (MT), corrobora. “Ainda há traços muito fortes do machismo nos relacionamentos entre gêneros. As mulheres estão ganhando cada vez mais consciência de que não devem aceitar viver em relacionamentos abusivos, mas precisamos que as ações de reeducação dos homens autores de violência – previstas na Lei Maria da Penha – sejam multiplicadas. A prevenção é um trabalho imprescindível para que, no futuro, não tenhamos essa quantidade de processos pelos motivos corretos: a redução no número de casos”, afirma o juiz.
Eficácia na proteção
Entre os instrumentos criados pela Justiça para prevenir o agravamento da violência está o Formulário Nacional de Avaliação de Risco. Desenvolvido com apoio do CNJ, ele é utilizado em delegacias, fóruns ou onde ocorrer o primeiro atendimento dessa mulher, a fim de permitir às autoridades anteverem o risco de ela vir a sofrer novos episódios de agressão.
“É um instrumento de informação importante para as autoridades diante desses casos, servindo como um orientador, um norteador de nossas decisões”, diz o juiz Ben-Hur Viza, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).
A vice-presidente do Instituto Maria da Penha, Regina Célia Barbosa, exalta que a lei “não é perfeita, mas completa”. E diz que a riqueza da legislação é o da objetividade, que contribui para que o enfrentamento à violência seja feito de maneira estratégica e concreta. No entanto, aponta falhas na aplicação da lei em termos de políticas públicas em todos os segmentos essenciais, como educação, saúde, economia, habitação e segurança pública.
“Estamos esbarrando na formação continuada e permanente de servidores, agentes e sociedade civil e na infraestrutura. Temos ilhas de pessoas habilitadas e isso não dá amplitude para mudar esse cenário”, diz a especialista, para quem a mudança está em velocidade baixa.
Política de Enfrentamento do CNJ
Órgão de coordenação e orientação de políticas públicas judiciárias, o CNJ encabeça, desde 2018, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e, desde 2007, trabalha para melhor aplicação da Lei Maria da Penha por magistrados e tribunais. Em 2009, recomendou a criação das varas e juizados especializados em violência doméstica.
Atualmente, há 171 varas exclusivas em funcionamento. A ideia por trás da criação dessas unidades judiciais é a de que haja atendimento técnico e os casos sejam tratados de maneira responsável, empática, evitando-se, por exemplo, que os processos prescrevam por desinteresse do Estado ou por serem considerados de menor importância. Há 18 anos essa era a normalidade.
Texto: Regina Bandeira
Edição: Beatriz Borges
Agência CNJ de Notícias